domingo, 14 de março de 2010

O que Gilberto Gil não disse no filme sobre Jards Macalé, o maldito

Por ARNALDO BLOCH

Andei ouvindo de novo “Gil luminoso”, disco só de violão e voz, aquela versão de “Aqui e agora”. Que violão toca o Gil! Aí fui ver o documentário “Jards Macalé — Um morcego na porta principal”, de Marco Abujamra e João Pimentel, em cartaz no Rio. Que violão toca o Jards, “Macao” pros íntimos... Sou fã dos dois, conheço mais a obra de Gil, mas o luxo e a inteligência de Macalé, artista, enter tainer, humorista, cantor, ator, autor, me assombram a cada dia.

Não é uma voz fácil. Como diz Luiz Melodia, é para“ouvidos atentos”. Jards é maldito. Xingou multinacionais, queimou-se um bocado, o boquirroto. Gil, num depoimento gravado quando ministro, comentou, no filme, esse aspecto, de um modo que me entristeceu.

Disse Gil que houve artistas de sua geração, como ele próprio e Caetano, que cuidaram de suas carreiras, construíram cada trabalho com uma certa lógica, em que as roupas, as capas, os conceitos musicais e poéticos, tudo fazia um sentido. (Inclusive, suponha-se, Caetano não ter dado a Jards o crédito pela sonoridade de “Transa”, um golpe duro na sua... carreira.)

Gil diz que, outros, como Macalé, não cuidaram da tal carreira. Abandonaram- na ciclicamente. Disse-o com um certo ar de lamento, sem nada acrescentar do ponto de vista de um julgamento de valor. Depois, respondendo a uma pergunta, admitiu, com franqueza, que transigiu, que cedeu, que fez concessões. E justificou: é lógico!, afinal, a própria existência do “outro”, a admissão de que não estamos sós na dinâmica social, pressupõe concessões, então como é que não se vai fazê-las?, Gil altissonou com uma veemência daquelas que tornam a sentença uma evidência inclemente.

“Faz parte do ethos e do pathos”, acrescentou, e aí eu me lembrei que, em cena anterior do filme, Macalé fala dos patos (sem agá), dizendo que, certa vez, as aves, ao ouvi-lo cantarolar à beira de um lago, responderam aos volteios de seu canto cheio de detalhes, repiques, síncopes, repetindo suas inflexões. Pois, segundo Macalé, é da natureza dos patos ouvir música e responder, e eu acredito: isso ocorre com outros pássaros também, quem já cantou na floresta sabe.

O Gil, ao proferir essas verdades elegantes, não tinha qualquer obrigação de atentar para o fato de que, mesmo tendo abandonado ciclicamente sua carreira, Macao, o conjunto da obra, ainda que difícil, para loucos e raros (ao menos por aqui, pois em Paris ele seria visto como um grande cantor histriônico, de uma expressividade singularíssima) constitui um todo caótico e uno, paradoxal, complexo, culto.

Gil não tem qualquer obrigação, tampouco, de atentar para outro fato: o de que, entre não transigir e não fazer concessão alguma (impossível) e fazer o máximo de concessões possíveis, há gradações. E que a evidência de que Macalé fez poucas concessões constitui a formação da figura que ele é, confere-lhe a sua originalidade, a sua qualidade única. Gil não tinha obrigação de dizer isso nem de prestar qualquer homenagem ao cantar demiúrgico e ao violão pós-Baden Powell posto no liquidificador das emoções e do sofrimento e do amor mais intransigentes, e à sua maneira própria de ser pop sem parecer pop.

Num documentário de Andrucha, Gil, citando Andy Warhol, diz que, se ser pop é gostar das coisas, ele é pop no sentido de “gostar de gostar das coisas”; se Gil, então, gosta tanto de tudo, se abraçou tanto o mundo em seu arcabouço tropico-antropofágico, se Gil elogiou tanto o trabalho de Sandy e exaltou tanto Ivete Sangalo, será que custava muito deixar umas migalhas de reconhecimento ao gênio de Macalé, o pato? Não precisava nem dizer, como disse o Zé Celso Martinez Corrêa no filme de Abujamra e João Pimentel, que Macalé é da estatura artística “de uma Maria Callas ou de um Oscar Niemeyer”. A gente sabe que Zé Celso sempre fala através de hipérboles, embora faça um certo sentido, para quem olha o Macalé como um ser múltiplo, um mascarado de Gotham City, um super-homem mautneriano mas abençoado com mil-e-uma técnicas e arquiteturas, compará-lo a Callas e a Niemeyer sem que isso se converta numa equação de equivalência perfeita, ora pô!
Vejo, talvez equivocadamente, se for me corrijam, a fala de Gil como uma justificativa. Um statement que, mesmo inconscientemente, ilude o receptor, induzindo-o a mergulhar numa hiper-relativização que na verdade não relativiza nada e acaba por desaguar no maniqueísmo. O certo é cuidar da carreira, o certo é embarcar numa lógica contínua, o certo é fazer as concessões que a cada ser forem adequadas, e cada ser colherá os benefícios (de agir assim) enquanto os que não rezarem por essa cartilha, os “outros”, colherão a erva daninha do “maldito”, saco de gatos no qual Macalé, junto com tantos outros, foi jogado. Primeiro para se o excluir do “sistema” e, depois, para trazê-lo de volta, sob um selo que iguala e uniformiza, para efeito de venda, todos aqueles que não “cuidaram” de suas carreiras e, mesmo assim, lá no fundo, bem escondidas atrás das barricadas, têm uma puta expressão artística e são grandiosos e insólitos. Gil, meu ídolo, não tinha obrigação de dizer isso, mas a gente não controla as expectativas sobre nossos ídolos e, por isso, fiquei triste, mas vou lá ouvir de novo o violão luminoso de Gil e, depois, ver de novo o Macalé brilhar no cinema.

Não percam.

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